A 11ª edição do ATLS nem foi lançada e já tem dado o que falar. Algumas grandes mudanças que na prática já eram utilizadas, vieram à tona. Enquanto algumas outras já eram pra ter mudado e seguem sem atualização. Vamos fazer um comparativo entre as duas edições e entender como tem se posicionado o Colégio Americano de Cirurgiões.
X – Controle de hemorragia exsanguinante
10ª Edição
- Reconhece que “hemorragia é a vilã número 1 do choque traumático”. Tem capítulos robustos sobre fisiologia da perda sanguínea, aquela clássica tabela das classes de choque, torniquete, wound-packing e afins. Mas ainda trata isso “nos bastidores” do ABCDE, sem dar o destaque que merece.
11ª Edição
- Dá ao X a importância que lhe é devida: um capítulo dedicado a ele. O X do XABCDE não vai diminuir a importância do manejo inicial de via aérea, que é tão ameaçador a vida quanto. Mas o manejo do X é uma avaliação rápida de perda sanguínea maciça que pode ser controlada já na chegada do paciente. Concomitantemente, o manejo de via aérea pode ser feito pelos demais membros da equipe.
A – Airway (vias aéreas)
10ª Edição
- Você já conhece: manutenção da oxigenação, cuidados na via aérea queimada ou com inalação de fumaça, restrição cervical até radiografia, sons de obstrução (roncos, gorgolejos e estridor) e aquela máxima do Glasgow ≤ 8 = intubar como indicação máxima. Mas sabemos que existem, entre o preto e o branco, cinquenta tons de cinza. E o paciente que está intoxicado com ECG<8 mas que pode acordar após antidoto? E o paciente que deu entrada com ECG 15 e agora está com ECG 9 após um TCE? Ele não merece ser intubado após esse rebaixamento? Na prática, a indicação de intubação recai sobre o ABC – A: via aérea impérvia ou desprotegida; B: incapacidade de oxigenar e ventilar; C: desfecho clínico desfavorável.
- Com relação as drogas da intubação, a orientação do livro é etomidato 0,3 mg/kg. Talvez hoje a cetamina no Brasil tenha ganhado tanto espaço que, segundo inclusive dados do BARCO (maior estudo de via aérea na emergência do Brasil), é a droga mais utilizada nas intubações de emergência. O ATLS 10ª edição ainda cita sedativos que já não são mais utilizados na emergência, como o tiopental. E no caso dos bloqueadores neuromusculares para sequência rápida de intubação, o rocurônio sequer é citado nessa edição.
- Tradicional mnemônico LEMON para via aérea difícil (olhar externamente, Mallampati, etc.), com achados de anatomia que podem tornar uma intubação mais difícil. Mas sabemos que hoje muito se fala em via aérea fisiologicamente difícil. E com o advento dos dispositivos de intubação, tais como bougies articulados, videolaringoscopia, lâmina McCoy e tantos outros, a via aérea anatomicamente difícil ficou para trás quando comparada com uma otimização fisiológica difícil. Imagina só estar diante de um choque hemorrágico persistente, descendo sangue em dois acessos e ainda assim um paciente com PA inaudível precisando ser intubado o mais rápido possível? O risco de PCR peri-intubação é altíssimo nesses casos e a grande dificuldade é otimizar.
11ª Edição
- Redefine “via aérea difícil” como um combo de anatomia + ambiente + fisiologia + trauma. Ou seja: não basta ter uma anatomia difícil, a hipovolemia, choque hemorrágico, as condições da emergência também contam.
- Atualiza a indicação de intubar da edição anterior em um novo algoritmo: indicação de intubação ABCDE: A: patência de via aérea. B: incapacidade de oxigenar e ventilar. C: alteração de estado mental devido ao choque. D: TCE grave com ECG<8 ou menos. E: grande área queimada.
- Traz capnografia como padrão-ouro para confirmar intubação (e até ensina a ler a forma de onda!).
- Defende o vise grip (segurar a máscara com as eminências tenares de ambas as mãos) como o método preferencial para ventilar com dispositivo bolsa-válvula-máscara.
- Inclui dispositivos mais modernos: cateter nasal de alto fluxo (CNAF), bougies, videolaringoscopia com lâminas variadas. Traz inclusive imagens de videolaringoscopia como padrão ouro de intubação.
- Novidades como checklist de intubação e oxigenação apneica para ganhar segundos preciosos durante a apneia. Duas novidades que não eram citadas na edição anterior e foram atualizadas na 11ª edição.
- Não se esquiva mais: o método preferencial de intubação assistida por drogas é Sequência Rápida de Intubação (SRI).
- Debate drogas: mantém o etomidato na dose de 0,2-0,3 mg/kg (e continua citando o tiopental como sedativo para indução de SRI), mas inclui a cetamina entre os indutores preferenciais. Acrescenta também o rocurônio como alternativa de bloqueador neuromuscular, junto à succinilcolina. Chamam atenção, entretanto, algumas dosagens inferiores ao recomendado pela literatura mais atual: cetamina iniciando numa dose subdissociativa de 0,5 mg/kg na edição, embora 1–2 mg/kg seja o ideal para dissociação; rocurônio com a dose 0,6–1,2 mg/kg a literatura atualizada de 1,5 mg/kg (dose associada a bloqueio neuromuscular mais efetivo e mais rápido) e succinilcolina a 1 mg/kg, vs. a dose tradicional de (pelo menos) 1,5mg/kg, também associada a melhores condições de intubação; e fentanil com a dose de 0,5-1mcg/kg, bem inferior ao 1-3mcg/kg normalmente recomendado. Talvez em uma próxima edição esse ajuste de doses já venha mais atualizado e otimizado.
- Alerta para o potencial hipotensor das drogas, com ênfase para fentanil, midazolam, propofol e tiopental.
- Traz uma tabela de vasopressores, incluindo opções em push dose como Epinefrina, Metaraminol e Fenilefrina.
B – Breathing (ventilação e oxigenação)
10ª Edição
- Quando o assunto é pneumotórax hipertensivo, manda o clássico de punção com cateter de 5 cm (sucesso ~50 %) ou 8 cm (> 90 %) no 5º espaço intercostal anterior à linha axilar média – e ainda menciona a toracostomia digital como recurso “salva-vidas”.
11ª Edição
- Mantém os dois métodos (agulha de grosso calibre ou descompressão digital), mas recomenda o jelco 14 no 5º espaço (aqui ele traz a opção de realizar no 2º espaço na linha hemiclavicular, dependendo do cenário).
- A toracostomia digital ganhou precisão: no 5º espaço entre linhas axilar média e anterior, antes de fixar o dreno definitivo.
Resumo rápido: pouco mudou no “como perfurar”, mas a 11ª edição te dá alternativas de localização.
C – Circulation (circulação e choque)
10ª Edição
- Traz a tradicional tabela dos 4 estágios de choque (I a IV). Na prática, quase ninguém quebra a cabeça com isso em um atendimento de trauma real. Imagina só o paciente vítima de um atropelamento e você tentando encaixar os sinais vitais em 4 estágios em uma tabela…
- Fluxograma dedicado à parada cardiorrespiratória (PCR) traumática, orientando iniciar compressões torácicas externas, seguidas por descompressão torácica bilateral, administração de epinefrina 1mg e toracotomia de reanimação.
11ª Edição
- Deu uma repaginada na tabela clássica dos 4 estágios de choque e apresenta uma classificação em hemorragia menor, moderada e grave, mais intuitiva e direta (mas ainda enquadrando o paciente em caixas de sinais vitais).
- Mantém o FAST (exame POCUS) como método beira leito rápido, que pode ser repetido e que em um paciente instável pode responder rapidamente à pergunta: tem líquido livre na cavidade? Mas segue citando o lavado peritoneal diagnóstico – método invasivo que foi praticamente abandonado depois da popularização do FAST.
- Traz uma tabela interessante de fatores que alteram a resposta à ressuscitação (compara idoso vs. jovem atleta vs. grávida vs. criança). Essa tabela vai de encontro a tabela clássica do choque em 4 estágios, se formos parar pra analisar. Pois pensando que a tabela generaliza e resume o paciente chocado a um grupo de sinais vitais, nessa edição renovada do ATLS ele traz o entendimento de que “cada população reage diferente”.
- Atualiza o uso do ácido tranexâmico: forma clássica de 1 g após o trauma + 1 g nas próximas 8 horas. E traz uma opção de dose única de 2 g, desde que dentro de 3 h do trauma.
- Tabela também muito interessante de reversão de anticoagulantes, definindo qual antídoto aplicar em cada caso, com doses personalizadas para cada droga. Digna de um print pra guardar no celular.
- Não há mais fluxograma para PCR traumática. Considera as compressões torácicas ineficazes neste cenário, e destaca que a correção de hipóxia, hipovolemia, pneumotórax hipertensivo e tamponamento cadíaco são prioritárias em relação às intervenções padrão do ACLS. Caso não haja retorno à circulação espontânea, toracotomia de reanimação pode ser considerada.
Conclusão
O ATLS 10ª edição entrega o protocolo clássico e funcional. Já a 11ª edição refina cada passo com tecnologia, flexibilidade e segurança in loco. Ajustes finos ainda merecem ser feitos, mas sem dúvidas uma atualização consistente com as mudanças que temos visto na condução dos pacientes politraumatizados no departamento de emergência.
Muito bom